quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Presunto

PRESUNTO
A Maria já chegou logo falando:
-Assim não tá dando prá agüentar. Outro presunto na rua hoje lá. Na frente da casa do meu cunhado, ao lado do quintal do meu vizinho. Em São Miguel, tá assim. É um presunto por dia, não tá dando, não!
Tudo que eu queria era comer o meu presunto em paz. O presunto da geladeira teve que se deparar com um outro, o que a Maria trouxe com ela de São Miguel. Tudo espesso. Tinha acordado tão bem e tudo ficou espesso logo cedo. Logo um passarinho cantou. Deus abençoa quem cedo madruga com os passarinhos que ainda restam aqui em São Paulo, sou dessas premiadas silenciosas, curtindo meus passarinhos anonimamente na cidade mórbida, poluída, colorida e cadavérica, mas com esse segredo de passarinho na minha casa, passarinhos para mim, ninhos a descobrir. Fui salva pelo pássaro. Salva da Maria. Por que São Miguel tem nome de santo, deve ser apelo. E apelamos aqui a São Miguel por todos os presuntos instalados em São Miguel , dia a dia.
A chuva fina caía lá fora. Desde a madrugada estava chovendo. Acordei com as trovoadas fora de hora, duas da manhã, eu assustada, sem saber com o quê ao certo. Talvez exista um medo básico da chuva em cada ser humano, ou um certo sustinho da trovoada. Demorei para pegar no sono por causa da chuva e da saudade de você. A cama grande, meio vazia, sentindo a sua falta.
Tomei café vigiando minha alma, sem relaxar , entende. Comi presunto. Presunto era o que eu mais tinha saudade quando eu era vegetariana. Pizza portuguesa. Você se lembra dessa fase, quando eu era vegetariana? Tudo num esforço total, árduo.
Depois do café da manhã, encontrei o Vinícius. O Vinícius é nosso vizinho, um homem de trinta e sete anos deficiente mental, que quer casar. Ele faz cartões de visita que distribui às mulheres que consegue abordar na rua. Ele queria me mostrar seu cartão novo. Chegou bem perto com seu guarda-chuva, daquela maneira aflitiva como sempre chegava:
-Oi, você pode olhar meu cartão? É novo!
Impossível dizer “não”. A criança tão próxima do adulto, a inocência tão perto do absurdo. O cartão novo do Vinícius tinha além do nome e telefone, a data de aniversário. Vinícius me perguntou se eu achava que ele tinha assim mais chances de encontrar uma esposa. A idéia dele era entregar o cartão e já explicar logo que queria compromisso. Falei a ele que não era assim que funcionava, precisava ficar amigo primeiro. Ele me explicou que não tinha tempo. Ficou difícil eu continuar argumentando ante o argumento dos argumentos: não tenho tempo. Fiquei quieta. Guardei o cartão. Me despedi do Vinícius e ganhei a rua, inquieta rua, São Paulo prá sempre perdida no seu harmonioso caos.
O dia inteiro você me ligou seis vezes hoje. Chuva e carência. Eu e você estávamos carentes, não é sempre assim, a gente não se liga tanto. Hoje foi um desequilíbrio. De vez em quando, um desequilíbrio não pesa: é uma fatia de presunto nessa imensa lasanha. Hoje, a chuva contribuiu para a água do mundo e até nós, estamos mais aquáticos, sem vinho já embriagados em telefonemas de amor e obscenidades.
Cheguei em casa e a Maria continuava assustada.
- Você parece que não tem medo da chuva, não tem medo da morte, não tem medo de nada.
- Tenho medo de rato, Maria. Tenho medo de rato. Chuva não atrapalha tanto, molha, mas beneficia, tem que limpar a poluição e ainda tem as plantas, as represas. A morte é tão ruim que a gente precisa esquecer, é sempre ruim.
- Mas tem morte melhor, morte pior.
-É sempre morte, é sempre ruim.
Fiquei tão impressionada com a sombra da morte que não quis saber dos detalhes da morte melhor, morte pior. A Maria também havia ganho o cartão novo do Vinícius. A
chuva não o impediu, uma solidão gigantesca o impelia. E me alcançava.
Aqui espero seu telefonema. Saudades. Como o presunto que sobrou na geladeira. A chuva só resolveu parar agora, nove horas da noite. A Cidade está inteira molhada. Será que amanhã vai ter outro presunto em São Miguel?