quarta-feira, 28 de maio de 2008

Solidão

Solidão

Solidão é um porre que não termina. Sabe quando você bebe muito e ainda acorda bêbado. Aconteceu comigo, mais de uma vez. A última foi quando tentei tomar uísque com Red Bull e ser moderna. Solidão é assim.
Solidão é um naufrágio sem sentido. Algo que você fala e ninguém entende. Você se arrepende de ter falado, mas nem por isso as palavras e o som se apagam.
Solidão é um remédio estranho. Você toma e não faz efeito. Você não entende o médico, nem muito menos o que seu fígado fez com o remédio.
Solidão é um bem que é um mal. Algo assim como estar apaixonado e decepcionado: solidão é um ar quente num dia quente, um ardor na fronte, no cérebro. Solidão é um banho que você toma sem querer tomar: só para ver se resolve.
Solidão não acaba com companhia. Ela acorda como quem não quer nada e se instala no dia: como um sol abafado. E não vai embora. O dia termina, mas a lembrança do sol ainda queima o seu corpo. O cansaço é solidão, agora sei. Solidão do corpo e da alma, saudades de outros tempos.
Solidão é saber que não se pode voltar.
Solidão é você me falar que a crise é sua, não tem nada a ver comigo.
A solidão não tem lágrimas, sorrisos ou amigos. Ela é uma âncora da eternidade. Porque Deus se sentiu sozinho e criou o resto do mundo. E tenho vontade de te recriar, aonde havias: filho ou homem.
A solidão é uma mulher bem vestida, maquiada, com um sapato de festa, sem convites, sem ninguém a esperar.
A solidão é essa noite sem vento, sem lua no céu: ela é um ocaso da minha maturidade- inesperado, tardio. É uma menopausa: não dói, não sangra. Não passa na televisão, não dá Ibope.
Soa como os ônibus que passam às cinco da manhã nas noites de insônia: sinal de algo que não se sabe, não se quer. Quem quer um dia após uma noite de insônia, outro dia?
A solidão é um recuo da sabedoria. É essa porta que já sei onde vai dar.
Enquanto você sofre, fico só. Olho-te do outro lado do vidro que nos separa. Tão tênue, coração de vidro.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Seu pai

Seu pai
Seu pai tinha os olhos verdes mais loucos de Amor que já vi.
A paz mais profunda que já senti.
Eles estavam fechados dentro do caixão e
Corri prá Casa.
Desde então percebi o valor da barriga quente do meu pai,
Do seu carro macio deslizando sobre as ruas esburacadas
Dessa Cidade.
E quando o seu Violino mágico canta,
Vou até a Terra encantada onde meu pai me ensinou a tirar matinho do Jardim para ganhar 1 real e gastar na vendinha comprando balas e dividindo com quem tem menos.
Seu pai me ensinou a fazer Amor de roupa porque sua mãe nos contou que nunca viu seu pai pelado.
Sua mãe me ensinou a amar em Silêncio, sem vícios, sem perdão e sem pintão.
Por causa dela, casamos na Igreja Católica e meu pai entrou de óculos escuros comigo.
É só por isso que rezo prá Virgem Maria, para que não nos deixe nem cegos, nem castos, fazendo bonito, ou sempre com aquele pacotinho de Miojo na mão.
E porque não sei o rosário nem tocar violão
Queria fazer do samba uma canção
Cheia de notas e melodias,
Com muito macarrão !

Mistério

MISTÉRIO
Planejei anos o conto da vingança. Em alguns momentos, mais sintéticos e profundos, seria um poema. Colocaria a palavra morte, sangue, a palavra Amor. Nem pensei que seria a morte da nossa melhor amiga, talvez a nossa única amiga verdadeira, que não percebeu nossa separação como uma saída, que me levaria ao computador.
É, infelizmente não estou aqui porque você gritou comigo, atrasou a pensão, mentiu dizendo estar ocupado ou não ter dinheiro. Estou aqui porque estou com saudade de falar com você e sei que seria inútil falar porque na verdade não existe o perdão e ele não cola coração e as lembranças não escritas não querem me deixar dormir essa noite.
Lembro sempre da gente rindo e cantando e o sexo desapareceu da minha mente. Não, eu não parei de menstruar e amo meu marido atual. Pelo menos na cama com ele está bom.
O que me assusta é perceber na minha mente que a cozinha suja não cheira mais a azedo, que as mágoas desapareceram e eu tenho vontade de chorar porque de repente tudo ficou bonito. Não sabia que seria assim envelhecer.
E preciso te contar que rio das nossas traições, nos acho divinamente ridículos e tolos e malucos e engraçados e perfeitamente engajados nos mais nobres valores da arte moral de ser infeliz agradando a todas as mais vaidosas criaturas.
Parece que ando em círculos abrindo o jogo e questionando a existência, mas não há dados em minhas mãos. Estou profundamente chateada por ser tão sua Amiga e sincera e ter visto nossa Amiga morrer. Achei que eu ia morrer antes dela. Não sei porque achei isso e agora vão ser mais anos de análise e terapias diversas para entender o que essa minha mente sombria, travessa e mal iluminada apronta prá mim nas noites de penumbra.
Converso com nossa Amiga nos nossos pensamentos e Ela me diz que não está bom como está. Que deveríamos fazer as pazes no mais íntimo de nossas Almas, porque do lado de lá tudo que é ódio vira Escuridão e só o amor purifica o mais longo dos dias que se chama Morte.
Ai, a solidão é este cálice onde enfio meus dedinhos cheios de Mel e os retiro.
Estamos no ápice e uma vertigem ainda nos atrai. Não é o vértice, um balão no céu que só existe na minha memória. É uma flor esquisita que nasceu onde eu não esperava. É um mês de balanço em pleno carnaval. São todas as estações sabendo que você criticaria minha falta de estilo escrevendo, minha falta de tesão pela pessoa certa e meu saco cheio por tudo isso que se chama prendas domésticas. Até de feng-shui cansei. Agora só quero viver essa paixão que tem me abençoado todos os dias. Não vou mais pedir perdão. Quero ser abraçada por uma multidão nua e sem culpas, sem a invenção do juízo final e do fim de nossos dias...
Ando com a foto do nosso neto na agenda e não sabia que a vida me daria tanta ternura e meiguice junto com as varizes.
Lembro de mim dançando e cantando “On the sentimental side” da Billie Holliday , com a camiseta lilás estampada que comprei numa liquidação que achei nos Jardins.
Hoje me disseram que “Felicidade” é o nome de um filme triste. Não pode ser. Acho que esqueceram de mim em algum circo do interior, no íntimo de um estojo do instrumento metálico. Sou uma partitura e o sentimento da neblina, a nostalgia do que não quer voltar nem ir
Sem, sem ponto final porque estragaria tudo que sempre foi bom em nossas vidas
E ainda é selvagem

Luz vermelha

LUZ VERMELHA

Estava parada no ponto do ônibus quando vi saindo da janela de um prédio bem na minha direção a luz vermelha. Lembrei de vinte anos atrás, eu te pedindo para comprar lâmpada vermelha porque eu tinha uma fantasia que queria realizar transando com você com a luz vermelha saindo do abajur; tinha esse detalhe que era importante.
Você voltou trazendo lâmpadas vermelhas, azuis e amarelas, porque você nunca soube dizer “não” a vendedores e achou que estava muito difícil de explicar a situação pro vendedor. Não sei porque você tinha que ter essa fantasia de que tinha que explicar alguma coisa pro vendedor. Achei que era algo de culpa sua não poder simplesmente chegar ao vendedor e pedir uma lâmpada vermelha, a gente sempre estava duro e você sempre gastando demais. Bom, eu reclamava mas acabava cedendo e assim fizemos fantasias amarelas, azuis, vermelhas, variando conforme a luz.
Agora isso: eu pisando nas minhas memórias. Será que amadureci? Minha amiga observou: estou sofrendo menos com o fim desse último relacionamento. E é mesmo. Aproveito a liberdade, rio das oportunidades. Estou esperando todas as manhãs sem medo.
Quando nossa amiga morreu, morreu com ela o meu medo de morrer. Agora sei que é ela quem vem me buscar. Antes eu não sabia. Pensava nos meus avós. Mas acho que até a hora da minha morte, eles talvez já tenham reencarnado, nesse mundo super povoado deve ter lugar para muita almas. Acho que vai ser ela quem vem me buscar. Claro que não posso ter certezas. Mas, sabe aquele faro, mistura de instinto e intuição...
Também no dia em que ela morreu chorei pedindo apenas amigos a Deus e tudo ficou mais simples. Nada de dinheiro, realizações e amores. Amigos: estou diante da minha existência e ela sentada não quer me dizer o significado dos maus momentos. São os bons dias que estão crescendo com a mesma solenidade que o nosso neto brinca de areia no parque e com esse espaço maravilhoso em que agora posso te escrever. É nesse silêncio onde ficaram nossos sons que posso abraçar o futuro como se ele fosse uma criança.
Será que fazem fantasias nesse apartamento com luz vermelha? Acho que sim. O sofá que vislumbro não deve servir só para ver TV. O tempo não me fez enjoar dessas brincadeiras, dessa intimidade e nos ecos da memória tem as nossas risadas, os nossos segredos, nossas combinações. Tudo é o melhor. Mas não podemos tocar pois se derrete: é nosso passado.
Já me sinto séria. Não é o ônibus. É lembrar de você preocupado. É meu destino ser corno?
É claro que é. O seu , o meu. Antes assim, que só. Ou você pensava que seria diferente, que te dariam a fração inteira, não fração, o golpe de vida como se fossemos deuses. Não nos deram essa sorte; pediremos esmolas de carinhos, de encontro e de sorte, retirantes, migrantes de uma outra estiagem. E nos sentiremos felizes com essa algazarra das lembranças que não morreram, de nossa amiga semi morta, sempre amiga, e com a areia que escorre tão serena da pá de nosso neto que não senti nenhuma dor nos últimos vinte anos.