terça-feira, 6 de maio de 2008

Luz vermelha

LUZ VERMELHA

Estava parada no ponto do ônibus quando vi saindo da janela de um prédio bem na minha direção a luz vermelha. Lembrei de vinte anos atrás, eu te pedindo para comprar lâmpada vermelha porque eu tinha uma fantasia que queria realizar transando com você com a luz vermelha saindo do abajur; tinha esse detalhe que era importante.
Você voltou trazendo lâmpadas vermelhas, azuis e amarelas, porque você nunca soube dizer “não” a vendedores e achou que estava muito difícil de explicar a situação pro vendedor. Não sei porque você tinha que ter essa fantasia de que tinha que explicar alguma coisa pro vendedor. Achei que era algo de culpa sua não poder simplesmente chegar ao vendedor e pedir uma lâmpada vermelha, a gente sempre estava duro e você sempre gastando demais. Bom, eu reclamava mas acabava cedendo e assim fizemos fantasias amarelas, azuis, vermelhas, variando conforme a luz.
Agora isso: eu pisando nas minhas memórias. Será que amadureci? Minha amiga observou: estou sofrendo menos com o fim desse último relacionamento. E é mesmo. Aproveito a liberdade, rio das oportunidades. Estou esperando todas as manhãs sem medo.
Quando nossa amiga morreu, morreu com ela o meu medo de morrer. Agora sei que é ela quem vem me buscar. Antes eu não sabia. Pensava nos meus avós. Mas acho que até a hora da minha morte, eles talvez já tenham reencarnado, nesse mundo super povoado deve ter lugar para muita almas. Acho que vai ser ela quem vem me buscar. Claro que não posso ter certezas. Mas, sabe aquele faro, mistura de instinto e intuição...
Também no dia em que ela morreu chorei pedindo apenas amigos a Deus e tudo ficou mais simples. Nada de dinheiro, realizações e amores. Amigos: estou diante da minha existência e ela sentada não quer me dizer o significado dos maus momentos. São os bons dias que estão crescendo com a mesma solenidade que o nosso neto brinca de areia no parque e com esse espaço maravilhoso em que agora posso te escrever. É nesse silêncio onde ficaram nossos sons que posso abraçar o futuro como se ele fosse uma criança.
Será que fazem fantasias nesse apartamento com luz vermelha? Acho que sim. O sofá que vislumbro não deve servir só para ver TV. O tempo não me fez enjoar dessas brincadeiras, dessa intimidade e nos ecos da memória tem as nossas risadas, os nossos segredos, nossas combinações. Tudo é o melhor. Mas não podemos tocar pois se derrete: é nosso passado.
Já me sinto séria. Não é o ônibus. É lembrar de você preocupado. É meu destino ser corno?
É claro que é. O seu , o meu. Antes assim, que só. Ou você pensava que seria diferente, que te dariam a fração inteira, não fração, o golpe de vida como se fossemos deuses. Não nos deram essa sorte; pediremos esmolas de carinhos, de encontro e de sorte, retirantes, migrantes de uma outra estiagem. E nos sentiremos felizes com essa algazarra das lembranças que não morreram, de nossa amiga semi morta, sempre amiga, e com a areia que escorre tão serena da pá de nosso neto que não senti nenhuma dor nos últimos vinte anos.

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